domingo, 30 de novembro de 2008



A senhora Lens fechou os olhos. Arfava. A respiração a enchia de vida exterior. O ar cortado pelas cigarras, recém-chegadas do fundo da terra, dividia a madrugada embebida em barulho de mar, tornando-a multíplice em sua lucidez dilacerada. O mar ao longe. Parece aqui. Dentro do quarto. Nos pensamentos relativos ao momento imediato, imprimiu-se um colorido digressivo. No pio da ave noturna há um desenho aos pés da freira no colégio; o raio lunar, em que nasce o cântico das contrações, retroage para a primeira varanda ao luar ou a madrugada em que a menina sai à luz vinda do ventre de sua mãe. E como ouvisse do lado de fora céleres os morcegos, ao som da inspiração profunda, ansiou a antiga liberdade. Mãe, mãe! Ambíguas, as lágrimas brilhavam como num reencontro. – Minha filhinha... As reminiscências enviaram ao corpo quieto na cama as praias da adolescência povoada de gaivotas. Quem sou, se pergunta. Mulher, menina; mãe, filha; esposa. Esposa. Bater de asas. O pulsar do colchão de molas havia ateado um rubor vivíssimo às partículas de pó, assim o Verbo no principio, quando fervilham esperanças entre o sabor e o azedume. Permanece, permanece por toda a noite, noite semelhante àquela em que a consciência fez com que ela se acovardasse e decidisse casar, apesar da claridade gloriosa de um dia distante – o primeiro dia do seu primeiro namoro – apenas reconhecido por certa memória imprecisa que ainda consegue vislumbrar a redenção, mas se confunde com as preocupações de segurança material. Ai. Um arrepio na parte de dentro das coxas. Como foi tola. O que se leva deste mundo? Nada, pensou ao levar os dedos. Então a revelação. Hoje. Espere. O gatinho sobe na cama e se aconchega ao lado dela. Esperaria, se anteciparia até. Através da estreita passagem, escura como a madrugada próxima ao amanhecer e, mesmo antes da aurora, pelo sol redimida.

Durante a primeira parte da manhã, talvez uns quarenta minutos, permaneceu diante do espelho. Ainda não morri. Nem mesmo estava velha. O fulminante amor que a colhera lhe destinou mudanças: nada mais do que – compreensão. Acontecera um dia com a pintura. Está sentada, ereta, com as mãos na região lombar. Olha para as mesmas mãos no reflexo, percebe os resíduos da tinta na pele, como uma roupa encardida. Produzira-se em seus quadros, essa compreensão, a partir da mudança da metrópole para a vila de pescadores. Um tom insistente, qual gemido. Poderia se chamar estilo. Estica-se para trás, alonga, geme. Regozijara ao descobrir o caminho a seguir. O mar; os matizes do mar; o barulho do mar; o cheiro do mar; e, oh sim, tudo encontrava eco em seu espírito de mar. Olha para o ombro esquerdo, nítido, branco e cheio, plena do sofrimento que é forma de vida em extinção. E o que ela – nereida – compreendia, passava às telas, em perfeita simbiose. Quando pintava. Mas não tem pintado. Abre as palmas diante dos olhos. É isso. Leu as manchas de sua pele. Sim, ela o amava. Amará de fato. Ama Gerard.

Dificil sabe como essas coisas acontecem. Gerard saiu um dia sem nada na mente além da rotina de seus passeios matinais. Alguém escuta os nossos pensamentos? Podem ser modificados exteriormente ao longo da acao planejada? É quase científico. Mantenham o dia assim igual, eu irei me adaptando. Acrescentava idéias a suas reflexoes naturais a cada passo da caminhada. Todavia. Como imaginar? Estava encontrando a solucao. Respirar fundo, se endireitar. Há novas turistas nesse trecho da praia e mais além as lindas jovens de sempre. Basta para que passe a haver sinais nos eu calcao. Hoje especificamente há uma certa estabilidade nessa beleza. Longe ainda, num ângulo lateral, Gerard se faz perguntas. Quem seria ela? Conforme se aproxima verifica pelo suor que está cerca de meia hora de exposicao. Monumento estirado. Esse sorriso é de alívio. Com que entao não estou. Como nos velhos tempos. Não pode mexer agora mas tenho de dar um jeito de se ajeitar. Bom e constrangedor. Olhou o céu, o sol, o reflexo nas águas. Um espairecimento banal que deve aliviar, pelo menos momentaneamente. Seria trágico, ou irônico, justo agora ter de desviar o foco. Querer a acao ou a contemplacao, nada de meio-termo? Nossa, dá para acreditar nessa lisa grossura dessas coxas? Que palavras para descreve-las? A senhora Lens se espantara, sustentando os seios com as moas, ao ver que Michele saira logo cedo. Sei como ela se sente. Ou talvez não soubesse. Sabe que a luz do sol não mais será a mesma após reencontrá-la. Por quê? Gerard não a pode ouvir afinal, talvez nem Silvia. O começo do fim. Falou com o vizinho como se nada de extraordinário. O de sempre, que calor, talvez chova mais tarde,. É que ela não sabia mas esperava. Começava a achar que a velha vida se apossara dele como jamais. O que é isso? Boas pessoas, pessoas normais não pensam nisso. Nunca será duro demais consigo mesmo, o pervertido. Gerard entrara nessa dimensão e uma vez aconteça nada mais a fazer exceto contemplar a pele brilhante, as dobras sombrias, o poder da natureza. Na verdade não mais contempla, torna-se cumplice, não há arte possível, utopia de amor, fantasia, berco, apenas as solas leitosas, um calcanhar essencial, as batatas, as batatas da perna, as pernas, a parte posterior, fogo escuro, ele não pensa mais, não há tal possibilidade, teria de se virar naquele espaço exíguo e tao intenso de grandezas, ali, escolher o semblante correto, a palavra adequada, esperava conseguir, não, convicção qualquer. Aquelas nádegas o haviam aprisionado, entao permitem um pouco dele para as costas, o sulco, usspirando até a nuca, e um outro pouco de Gerard para os cabelos, um pouco só, e retorna à prisao sombria, e a janela com barras dá para os montes encarnados no sangue rijo daquelas carnes. Só não há palavras, como dizer de um beijo? Beije-me por favor, disse ela, e a lingua disse mais. Só entao houve palavras e mesmo assim, e mesmo assim, e gaivotas rasantes, e carros algures, e o fluxo está forte, muito forte, por isso. Por isso. Ela se virou e se pôs à espera. Como assim? Precisa de que para comer minha bunda, babaca? Entretanto percebe ela o quanto o respeita por esse escrupulo. Esquecera quem era aquele homem. Não mais. Seria recuperado a cada violação de corpo. Agora põe atrás. Todos com mais ou menos jeito o faziam. Com mais ou menos dor. Quando souber que ele é quem sentiu dor, primeiro achará graça, Mas mesmo quando depois de achar algo irá permancer. Se tivesse vivido para tanto, Silvia teria oferecido seus préstimos. Algo. Um respeito inutuil pois continuará querendo, a violação por trás e o silêncio. Agora ai esse jeito inacreditável assim tampouco ela vê o rosto mas é ergonômico, menino e menina. Esse Gerard. Mas como sempre onde ele e George competem a tendência é que desapareçam os dois. Mais, ela quer mais. Seja ele proprio, se quiser. Mal sabia. Querer, querer de verdade, jamais ele quis. Estao no mesmo movimento, perseguindo um gozo que se afasta quando julgam alcanca-lo (não é esse o segredo?). Se Gerard as vezes parece mais perto, Michele o ultrapassará e ai chegará antes. O caminho percorrido não deixa duvidas. Isso é felicidade? Insistem na corrida frenética. Felicidade. Como se dissesse Eu sei que você ama minha mãe e eu amo o meu pai, isso nos faz iguais, nos dá esse direito de tentar. E se ele dissesse Michele não é certo, seria uma hipocrisia. Entao o que nos impede de gozar? Quase. Depois poderemos se for o caso nos culpar.

A senhora Lens ouviu o pássaro da noite quando se lembrou de Gerard no dia do almoço do aniversário de Michele. Se eram dois pontos; se o rosto que ela via agora, hesitando entre dizer algo e não dizer, esse ultimo Gerard nascera do primeiro — o estranho do hotel e o amigo da filha —, então, o ciclo perfeito se partira. Num recuo, ele viu as mãos dela. Deveria ter sabido que não se brinca com essas coisas impunemente. Ah, pensou ela, a vida poderia ser mais simples... Mãos de dona-de-casa, jamais deixou de ser, casa que era, de tão sua, seu prolongamento — sua habitação, seus sonhos, seu ser, tudo passara por aquelas paredes. Era do lar. Teria sido, ainda não fosse artista. Gostava de trabalhar, odiava não ter o que fazer. Ninguém poderá agora dizer que foi por isso, por causa do ócio. Tudo começou antes por causa do trabalho. Ela precisava demais de seu trabalho, não saberia viver de outra maneira. Quase estava se apaixonando por si própria quando se apaixonou por Gerard. E ele, sensível, traz-lhe os quadris e vai. Não saberia dizer se foi destino ou a vontade que dobra o destino. Fantasiaram a tal ponto, com a solenidade da terra em sua órbita? Imaginaram que se amavam tanto? No silencio refeito entre marulho, o mundo se santifica um pouco ali, resfolegando. Uma fé que se aprende a não mais esperar o amanha. Um pelo outro. Mas os ápices são sempre muito solitários. Ao longo da rua salpicada, as casas, com os vidros batidos e escuros e um recorte de janelas qual o de igrejas, cada qual tinha seu poste e relógio de energia. Uma sedã estava estacionado em frente. Um pouco ao lado, o pedreiro logo montaria em sua bicicleta em sua bicicleta por todo o dia encostada na alvenaria mal-acabada e iria descansarem frente aa televisão. O vidro do relógio de luz no poste de Gerard girava com a velocidade de uma geladeira esquecida aberta. Meu amor. O que será de nós? O mar continuava a encher e passou, das longas ondas amanteigadas, a quebrar miudinho na areia, com barulho semelhante ao murmúrio no diálogo de homens educados, pausando entre as frases e silenciando aa espera das replicas, as vezes esticadas numa explicação, outras detidas em monossílabos. O mundo aos olhos deles renasce. Desse orgasmo. Dois dias depois, sob as orações do pastor, o corpo de George Lens baixava aa sepultura.